(Quadragésima
segunda comunicação)
Uma crônica perdida no tempo
Prometi a mim
mesmo que no mês de dezembro não trataria diretamente de assuntos que
envolvessem o estado de devassidão a que fomos conduzidos, nem tampouco das
fragilidades institucionais. Mas elas continuam, apesar das festividades
próprias do fim de ano, sempre envoltas na fantasia contagiante do natal
consumista. Assim é que irei reproduzir uma crônica que nos leva a refletir
sobre uma realidade da vida, pouco notada: Fé e resignação.
Esta
crônica foi publicada no Jornal de Brasília no Natal de 1993, onde mantinha uma
coluna com o título de “Resenha da Atualidade”. Por considerá-la sempre atual,
embora acontecida na década de 1990, vou trazê-la para os nossos dias.
“Vou
aqui narrar uma destas grandes aulas que nos são dadas pelo destino. Isso
aconteceu numa cidade do interior de Minas.
Visitei, há algum
tempo atrás, um asilo de velhos. Tratava-se de obra dos Vicentinos. Notava-se a atuação de pessoas anônimas e
abnegadas. O ambiente era limpo e
denotava certa ordem. Era a minha primeira observação. Comecei a percorrer os cômodos habitados.
Dezenas de casos tristes, de pessoas inválidas, com o sofrimento estampado nos
rostos e nos “ais” sonoros e comovedores.
Lamentações em todos os tons, desde os quase imperceptíveis até gritos
alucinados, espalhando pelos ares impropérios e reclamações. O ambiente é pesado e quase
insuportável. Gritos que extravasavam
inconformismo e incompreensão, reclamando exatamente daqueles que, com
paciência e dedicação, lhes prestavam socorro. Ali estava o retrato da
humanidade. É muito difícil conformar-se com situações adversas, embora estando
amparados pela caridade de uma Vila Vicentina.
Mas o reconhecimento depende exclusivamente do que a pessoa é, e não do
que deveria ser.
Eu me encontrava perplexo e
surpreso, pois esperava encontrar um ambiente de paz. Assim, quase que tocado
pela intuição, aproximei-me do mais “coitado”, daquele que me tocou mais
profundamente na alma:
Bom
dia, meu senhor! Com um aceno tímido e uma voz tremida, pausada e fraca, veio a
correspondência: Bom dia!
Tentei
um diálogo, mas fui surpreendido pela iniciativa daquele “pobre coitado”. Com as mãos magras, cheias de manchas escuras
e cicatrizes profundas, apertou as minhas mãos como que tentando agradecer-me
por aquela oportunidade, dispensando-lhe um pouco de atenção. E assim, com os olhos sem brilho e embaçados
pelas lágrimas, deu-me a maior aula de humanidade, ensinamentos que não se
aprendem em nenhuma escola. Com uma voz
rouca e soluços entrecortados, em poucas palavras mal pronunciadas, disse-me
mais ou menos isso:
“Há
muito tempo que já morri, pois a minha vida consiste simplesmente na minha
incômoda presença. Estou aqui apenas para dar trabalho, meu filho! Sofro dores
horríveis, porém as sofro calado, apenas para mim, pois penso que reclamar,
resmungar, gemer ou até mesmo chorar, além de não valer de nada, estarei
procedendo de modo egoístico, fazendo com que outras pessoas sofram também
comigo. Já passei pela vida por suas várias etapas, sempre sofrendo: criança
órfã de pai e de mãe, criado com o rigor que se dispensa a esses “pobres
diabos”. Cresci na lida da fazenda: guia de boi, carreiro e, mais tarde, lida
de curral. Fui moço revoltado e brabo. Num pagode, por causa de pouca coisa,
quase matei um caboclo! Paguei pelo que fiz, pois pobre sempre paga, até mesmo
pelo que não deve. Casei e tive filhos. A mulher morreu cedo e me deixou com
três meninos. Todos machos. Cresceram e desapareceram. Saíram de casa e nunca
mais tive notícias deles.”
Fez
uma pausa e continuou:
“Do pouco que me lembro procuro esquecer. Não tenho
saudade de nada, mesmo porque nunca tive tempo bom. Procuro viver o presente
que está apenas no minuto que passa. Rezo sempre. Do jeito que eu sei. Falo com
Deus, pois eu vivo o meu Deus: no sofrimento físico, num sentimento de culpa
que não consigo descobrir de onde vem, numa tristeza de velho inútil, no
isolamento voluntário, enfim, no meu mundo.”
Calou e permaneceu pensativo e de olhos fixos no
infinito, como que a querer descobrir outros mundos.
Despedi-me
e fui premiado com um confortador “Deus te abençoe, meu filho!”
Tentei dizer-lhe algumas palavras que viessem
confortá-lo. Não as achei. Nem naquele momento, nem nunca.
Sinto hoje o quanto aquela vida, no seu mundo, é
superior a minha vida. Nela havia resignação e fé, essências puras do
mundo espiritual.”
Com esta
crônica perdida no tempo transmito aos visitantes deste Blog os votos de um Feliz
Natal, pleno de boas recordações do passado, com paz de espírito e fortalecimento
dos laços familiares.
É disso que
estamos necessitando, num ambiente de descrédito dos valores que fortaleçam a
fraternidade, único elo que nos identificam como filhos de Deus.
Que no ano
de 2014 tenhamos muitas surpresas agradáveis para comemorar.
Feliz Natal e
um próspero ano novo!
Bela crônica! Bem propícia para a ocasião. Parabéns pelo texto que, apesar de publicado há algum tempo, é sempre atual. Abraços.
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